Skip to main content

Apresentação

Apresentação

Ars Sexualis'24:
Somos Seres Fetichistas !?

"O fetichismo não é sintético nem harmônico.
Não é tonal nem tônico.
É perturbador e metamórfico"
(Massimo Canevacci)

O que você pensa sobre fetiche?
Como sua pesquisa atravessa o fetiche?
Como sua arte é transpassada pelo fetiche (ou seu fetiche pela arte)?
Ou melhor, qual a relação entre arte e fetiche?
Entre esta relação arte e fetiche existe a nossa existência humana e vivenciar nossos fetiches é tornar presentes nossos desejos e acreditamos que todas as pessoas possuem desejos, logo poderíamos pensar que todes nós Somos seres fetichistas!?

Luísa Saad nos apresenta uma perspectiva interessante sobre o fetiche. No seu livro Fumo de negro: a criminalização da maconha no pós-abolição, ela escreve o seguinte:

Atualmente, o termo “fetiche” sustenta uma carga bastante pejorativa, mas a palavra tem sua origem em “feitiço” e é também associada etimologicamente a palavra de origem latina factitius, originária dos termos “fictício” e “artificial”. William Pietz analisou essa conexão e indicou o caráter do feitiço como não natural, algo feito. Relacionado com o culto aos ancestrais e o culto a deuses pagãos, o fetiche está intimamente ligado a uma cultura material, através de oferendas e objetos depositados, em especial, nas sepulturas e encruzilhadas. Para a teologia cristã, tal exagero na materialidade e na personificação representaria mera superstição e, quando existem essas práticas supersticiosas, seria sinal que o diabo estaria agindo de alguma maneira.1

O termo fetiche, como aponta a autora, ainda carrega aspectos morais quando levado a público, ou seja, falar ou explicitar fetiches é visto como algo obsceno. No entanto, é curioso que haja essa relação fetiche e obsceno. A interlocução entre arte e fetiche que propomos é por observar que talvez o campo mais fetichista dentro das ciências humanas seja justamente as artes visuais que tem como contemplação e desejo um objeto que é sacralizado pela sua construção simbólica e historiográfica. O fetichista assume-se também voyeur.

Neste emaranhado entre arte e fetiche em que se observa a moral, o obsceno e o voyeur - entre outros tantos desdobramentos. Apresentamos algumas perspectivas teóricas, não como respostas ou definições, mas como provocações para que caminhos podemos traçar em nossas produções artísticas e acadêmicas.

Primeiro, vamos a Pierre Bourdieu que escreve:

O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra.2

Já Jorge Leite Jr. nos traz a relação do fetiche ao objeto e as práticas sadomasoquistas:

Para muitos, o fetichismo é o sadomasoquismo, embora com ressalvas: enquanto a primeira forma, em seu estado "puro" não requer uma inter-relação – pois trata-se normalmente de um objeto – na segunda [o sadomasoquismo] o relacionamento é fundamental e indispensável.3

Ora se Bourdieu afirma que o valor da obra de arte enquanto objeto é fruto de um processo relacional e Leite Jr. que o fetiche é um estado puro não relacional, como poderíamos pensar a relação do voyeur e do fetiche e como essas condições explicitam o campo das artes visuais? Mais uma vez, talvez não sejam estas perguntas o mote principal, mas é interessante pensar como o sistema de arte pode ser visto por estas mesmas pessoas voyeurs e fetichistas? Como a tal sacralização de objetos que nos enfeitiçam como espectadores são percebidos do ponto de vista do voyeurismo e do fetichismo?

E por falar, em feitiço, o termo fetiche refere-se a

Objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto, ou então, objeto inanimado ou parte do corpo considerada como possuidora de qualidades mágicas ou eróticas. Em sua origem mais remota, de 1605, sortilégio, amuleto, do português feitiço, do latim factitius.4

No entanto, como bem aponta Massimo Canevacci, a origem do termo se deve ao colonialismo português sobre os povos africanos e seus rituais sagrados tidos como "pagãos", "idólatras", "mágicos" e como tal

A matriz colonial do fetichismo cunhada pelos portugueses não só favoreceu a difusão de um conceito que foneticamente também se apresenta como sedutor, que inferioriza o outro com o metro classificatório da noção de religião, mas foi também assumida como objetiva pelas mesmas pessoas (e pelos seus sucessores) contra as quais foi cunhada.5

No entanto, Massimo amplia esta ideia de fetichismo para o que ele chama de "fetichismos visuais". Sobre isto, deixamos vocês com o seguinte trecho do livro:

Fetiche é, de fato, uma palavra que, em sentido comum, evoca alusões obscuras de natureza mágica, animista, sexual, nunca definidas precisamente; pois ele favorece essas imprecisões ambíguas, na medida em que é do próprio fetichismo "indefinir" os limites no interior dos quais identificar o seu poder de influência e de pertencimento. Esta última afirmação, em todo caso, é parte constitutiva de uma conclusão sobre esse tema, que não estava prevista inicialmente: o fetichismo atual ultrapassa de todo os âmbitos em que tradicionalmente (ou "modernamente") fora contido. Os fetichismos visuais transbordam. Eles se encarnam em atratores pela potência sexuada que imobiliza momentaneamente o olhar: fixa-o. O atrator - na medida em que incorpora um elemento fetichista visual - fixa o olho de quem olha. Fixa-o seja no sentido que imobiliza as faculdades perceptivas visuais do sujeito e seja no sentido que o olha com uma intensidade mono-direcional dilatada e alucinada. Quando um atrator fixa o olhar de quem o observa, é ele mesmo que se move, os seus lados fetichistas se dilatam, circundam e penetram no interior do corpo do observador através das pupilas.6

Assim sendo, temos como proposta ressignificar a carga pejorativa que o termo fetiche possui para grande parcela das pessoas, como apontado por Saad, isto com o auxílio de Massimo e sua contribuição que aponta uma história do termo, que coloca que

O fazer-se visual do fetichismo implica uma série de profundas transformações conceituais e mesmo metodológicas sobre como se aplica esse termo.7

Dito isso, implica-se uma quebra das estruturas políticas hegemônicas não apenas da relação social que exercemos com o termo fetiche mas de sua relação com o campo da arte. Como vimos, o termo fetiche possui aspectos que vão além dos prazeres sexuais, mas também da relação público e obra de arte. Nessa ruptura, Bruna Kury questiona

e se quebrarmos toda esta estrutura? Quantas fetichizações cairiam por terra?8

Deixamos vocês com estes pensamentos e questionamentos como provocadores de suas escritas fetichistas para a edição 2024 do Ars Sexualis - Seminário Internacional de Artes Visuais. Então, peguem suas cordas, chicotes, câmeras, lingeries, canetas, lápis, tintas, tecidos, dildos, plugs, livros e tragam seus fetiches, suas artes, suas sexualidades e, para ajudar nas suas escritas, aumentem o volume e ouçam o novo álbum de Baco Exu do Blues: Fetiche.

[1] SAAD, L. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição [online]. Salvador: EDUFBA, 2018. Drogas: clínica e cultura collection. Edição do Kindle. Não paginado.
[2] BOURDIEU, Pierre. O ponto de vista do autor: algumas propriedades gerais dos campos de produção cultural. In: BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 259.
[3] LEITE Júnior, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia "bizarra" como entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006. p. 252.
[4] HOUAISS, A.; VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[5] CANEVACCI, Massimo. Fetichismos Visuais - Corpos Erópticos e Metrópole Comunicacional / Massimo Canevacci. São Paulo, SP: Ateliê Editorial, 2008. p. 241.
[6] Ibidem. p. 235-236.
[7] Ibidem. p 235.
[8] KURY, Bruna. Desconstruir sem fetichizar ou como destruir a estrutura do prazer hegemonizado In: Vulgar. Organização: André Medeiros Martins; Hudson W. de Carvalho; Betinho Neto. 1ª ed. São Paulo: Ed. do Autor. 2020. Não paginado.